Perfil:
- Coordenador do Centro de Memória da PUC-RS, onde lidera 33
alunos (entre Iniciação Científica, Mestrado, Doutorado e Pós-doutorado).
Formou mais de 80 Mestres e Doutores, hoje professores em 25 universidades ou
centros de pesquisa do Brasil ou no exterior.
- Autor de 11 livros e mais de 600 de artigos científicos
- Mais de 12.000 citações em artigos científicos (o mais
citado da América Latina)
- Linhas de pesquisa: mecanismos bioquímicos da formação,
expressão, extinção e reconsolidação de memórias; mecanismos moleculares de
plasticidade sináptica; alterações na memória com o envelhecimento normal e na
Doença de Alzheimer.
- Distinções: membro da National Academy of Sciences dos
EUA, da Associação Brasileira de Ciências, Comendador da Ordem do Rio Branco,
membro do comitê editorial de muitas revistas científicas e assessor de várias
agências de fomento do país e do exterior.
Iván Antônio Izquierdo é médico e
neurocientista, especialista nos mecanismos da memória reconhecido internacionalmente.
Naturalizado brasileiro em 1981, nasceu em Buenos Aires, fez sua graduação e
doutorado pela Universidade de Buenos Aires e pós-doutorado na Universidade da
California em Los Angeles (UCLA). Foi professor da Universidade de Córdoba, na
Argentina, e mudou-se para o Brasil em 1973, incorporando-se posteriormente à
Escola Paulista de Medicina (hoje Unifesp) onde fundou um grupo de pesquisas em
neurociência.
Durante mais de 20 anos, Izquierdo integrou o Departamento
de Bioquímica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Seu grupo
de pesquisa, agora ampliado, está no Instituto do Cérebro da PUC-RS, onde
Izquierdo é Professor titular de Medicina e coordenador do Centro de Memória.
Confira a seguir a entrevista gentilmente concedida por este
grande cientista à equipe do Cérebro Nosso, em agosto de 2009, quando Izquierdo
abordou seu principal tema de estudo, a memória, e falou sobre jovens
cientistas, suas descobertas, a necessidade de esquecer, envelhecimento normal,
depressão, os efeitos da ritalina sobre a memória – e sobre felicidade.
Suellen,
Suzana e Luisa entrevistam Iván Izquierdo na UFRJ, 07/08/2009
Você é um pesquisador de sucesso, com muitas linhas de
pesquisa seguindo em paralelo, muitas pessoas no laboratório. Você ainda faz
pesquisa experimental com as próprias mãos?
Com rato, com animais, parei há dois, três anos para não
competir com meus próprios alunos, porque vi que estava tirando o doce deles!
Agora, boa parte desta última pesquisa em humanos [sobre a persistência da
memória, que menciona mais adiante nesta entrevista] fiz pessoalmente, porque
era fácil. Mas a maior parte da minha pesquisa é com animais. Esta com humanos
foi exceção.
Você também tem um volume grande de trabalho
administrativo no laboratório?
Mais do que eu gostaria.
Seus ex-alunos continuam trabalhando em memória? Acontece
de haver competição com eles, trabalhando sobre os mesmos assuntos?
Alguns continuam trabalhando com memória, e outros passam
para temas diferentes. O Esper Cavalheiro [líder de um grupo na Unifesp] é
exemplo de um ex-aluno meu que passou para outro tema, epilepsia. Outros
continuam trabalhando em memória, ou em colaboração comigo, ou trabalhando
separadamente. Mas é um tema tão grande que não tem por que ter competição.
É uma tradição no Brasil os alunos de iniciação
científica permanecerem no mesmo laboratório para o mestrado e até mesmo
doutorado, com pouca mobilidade entre grupos de pesquisa. Você acha essa
continuidade positiva, ou, ao contrário, incentiva a ida para outros
laboratórios?
Os pioneiros desta tendência de treinar os alunos durante a
iniciação científica e depois continuar com eles durante o mestrado e às vezes
no doutorado foram Leopoldo de Meis e eu. Até o mestrado eu acho que sem dúvida
é bom ficar no mesmo lugar, porque você vai se acostumando, enquanto ainda é
aluno de graduação, e depois o mestrado sai mais fácil. O doutorado também pode
ser feito no mesmo laboratório, mas nem sempre isso é ideal. Às vezes é bom
mudar e fazer doutorado em outro lugar. O que nós fazemos desde que começamos a
trabalhar em conjunto com o grupo do Jorge Medina, em Buenos Aires, é mandar os
alunos uma longa temporada para lá. Os alunos deles também vem pra cá. Isto é
bom porque, embora a cultura argentina e a brasileira sejam basicamente iguais,
como a cultura belga e a francesa, a dos alemães do norte e do sul – quem faz
distinção entre as culturas argentina e brasileira é o Galvão Bueno – eles vão
e passam uma temporada em Buenos Aires, vêem outro povo, outra forma
ligeiramente diferente de pensar, de encarar as coisas. O argentino vem também
pro Brasil e encontra diferenças. E isto é útil.
Uma pergunta comum dos jovens é sobre o melhor momento
para ir estudar fora. Na sua opinião, é sair já para fazer o doutorado, ou
apenas para o pós-doutorado?
Antigamente eu achava - principalmente na época em que eu
estava no comitê do CNPq - que era depois do doutorado. Hoje não estou mais tão
seguro. Depende de cada um. Tem pessoas com 18 anos que estão prontas para
sair, e tem outras de 30 que não estão ainda preparadas. Depende muito de cada
um, depende de muitas variáveis. Acho que não há regra pra isso.
De quais de suas descobertas você tem uma memória mais
querida?
Talvez a que mais goste é a descoberta de que as memórias de
curta duração e de longa duração são paralelas. Foi muito bonito demonstrar
isto, era uma coisa elegante. Na época se achava que era um mesmo mecanismo.
Cheguei à descoberta dialogando com o meu amigo Medina, com quem faço quase
tudo em colaboração. Num jantar pensamos: como fazemos para demonstrar se são
mecanismos consecutivos ou paralelos? Aí, não me lembro francamente qual dos
dois disse, mas os dois pensamos, e é um trabalho em colaboração então tanto
faz que seja um, que seja outro: era preciso encontrar algo que
bloqueasse a memória de curta duração e permitisse a persistência da memória de
longa duração ao mesmo tempo. E encontramos muitos tratamentos que,
administrados à amígdala ou ao córtex entorrinal de ratos, faziam isso. Eram
creio que 11 ou 13 tratamentos que suprimem seletivamente a memória de curta
duração e permitem a persistência da memória de longa duração para a mesma
tarefa.
Até então todos os tratamentos bloqueavam os dois tipos
de memória?
Claro. Ninguém tinha investigado se algum deles bloqueava
seletivamente a memória de curta duração. Aí começamos a pesquisar na
bibliografia clínica e vimos que havia dois trabalhos originais, e uma revisão
destes, de uma pesquisadora inglesa, que faleceu, lamentavelmente, chamada
Elisabeth Warrington, que tinha estudado casos em humanos. Em um deles, com
lesões muitos restritas no córtex parietal, a pessoa perdera seletivamente a
memória de curta duração, mas persistia a memória de longa duração para uma
mesma tarefa. Um outro caso é um quadro clínico que se chama delirium. Sua
forma mais conhecida é o delirium tremens, mas existem outros tipos. No
delirium, o indivíduo não tem memória de curta duração e, por exemplo, vai ao
médico em estado delirante. O médico pergunta: “como você chegou aqui?” O
indíviduo responde: “não sei como cheguei aqui”. O médico pergunta: “veio de
ônibus, alguém te trouxe?” O paciente: “não sei”. E no final o paciente às
vezes se lembra, porque a memória de longa duração permanece.
Então estes dois sistemas em paralelo funcionam na mesma
estrutura, por exemplo, no hipocampo?
Sim. Talvez funcionem até na mesma célula, mas utilizando
sistemas metabólicos diferentes, em uma forma na qual a memória persiste pouco,
e uma outra na qual ela persiste muito, como trens que saem da mesma estação;
um vai até a quarta estação e volta, enquanto outro vai em frente.
Nossa cultura dá muito valor à racionalidade, mas você
mostrou que o estado emocional influencia a formação de memórias. Como você
descobriu isso?
Não sei quem descobriu, mas não fui eu. Foi alguém muito
antes de mim. Quem primeiro chamou a atenção para isso foi James McGaugh. O que
nós estudamos foi o efeito das catecolaminas cerebrais, como dopamina e
noradrenalina, sobre enzimas que regulam a síntese proteica. Quanto melhor for
a síntese proteica, melhor se gravará a memória, e mais proteína haverá para
formar as sinapses que irão guardá-la. Isso foi o que nós propusemos. E foi até
fácil, porque já se sabia da possibilidade de que a proteína quinase A, depois
as ERKs, estarem relacionadas com a morte (celular) e serem importantes para a
memória. São moléculas que compõem uma via sinalizadora, onde fosforilam
fatores de transcrição que regulam a síntese proteica. E quanto mais
fosforilado estiver esse fator de transcrição, melhor será a síntese proteica.
As vias que fazem isso são reguladas por neurotransmissores próprios da emoção.
Essa é uma regulação muito direta.
Por que isso acontece?
Do ponto de vista fisiológico, é porque as emoções atuam
sobre mecanismos localizados por exemplo na amígdala, que emite fibras para o
hipocampo e avisam para ele: olha, está acontecendo algo emocional! Algo
aversivo, algo alertante. McGaugh acha que a memória não se guarda na amígdala.
A maioria das outras pessoas, nós inclusive, achamos que em parte sim, a
memória se guarda na amígdala. Em todo caso a amígdala é o grande modulador da
entrada de memórias aversivas ou alertantes ao hipocampo.
Então, ao invés de você precisar pensar racionalmente:
“isso é importante, isso eu quero guardar”...
O cérebro já faz isso automaticamente. E depois,
paralelamente à amígdala, as emoções atuam afetando a liberação de adrenalina
perférica, corticóides, etc. E estes afetam as vias centrais dopaminérgicas e
noradrenérgicas, que são as vias das emoções, que participam da ansiedade, da
depressão. A serotonina também, mas sua relação com a memória é menos
conhecida. Mas dopamina e noradrenalina sabidamente são ativadas pela emoção.
Se ao mesmo tempo eu estou pensando numa memória, esta memória vai se gravar
melhor.
E, evolutivamente, qual a vantagem disso?
A vantagem é basicamente autoprotetora. Ou seja, é bom um
animal se lembrar bem, em primeiro lugar, das coisas que produzem medo, porque
em outra situação de medo é preciso rever essas memórias para saber o que
fazer. Então essas memórias dependem muito do estado no qual foram produzidas,
e o estado depende muito das catecolaminas cerebrais, que variam muito com cada
tipo de sentimento e emoção. As do medo são necessárias, as do sexo são
necessárias, as da fome são necessárias. Se não nos lembramos bem o que fazer
para escapar de algo que mete medo, da próxima vez que isso acontecer... o
jacaré vai comer a nossa perna.
Falando um pouco dos sonhos agora ... A teoria da
psicanálise dá um grande valor ao inconsciente e sua influência nos sonhos.
Qual, pra você, é a relação entre sono, sonhos e as lembranças?
O sonho consiste em memórias. Só que elas vêm no sonho
embaralhadas de uma forma diferente daquela como elas vêm na vigília. Então
tudo que aparece nos sonhos são coisas que alguma vez aprendemos, adquirimos,
são memórias – só que misturadas, e de uma forma diferente.
Com uma outra lógica?
Sim, uma outra lógica!
Mas você acredita que isso reflete desejos inconscientes
ou tem algum sentido?
Francamente não acredito, um pouco por experiência pessoal e
um pouco por experiência das pessoas com quem eu falo. A gente lembra as coisas
mais variadas e se tem ou não tem a ver com coisas que aconteceram nesse dia ou
em toda vida da gente, isto é duvidoso.
Então seria mais um período de livre associação? Livre
combinação de memórias?
Sim, tem muito de livre associação.
No seu livro “A arte de esquecer” você cita que, em
muitos casos, portadores da Doença de Alzheimer conservam “ilhas” intactas de
boa memória. O que são estas “ilhas”? Como e por que elas são formadas?
O que são, eu não sei, mas que existem anatomicamente, elas
existem. Por exemplo, na Doença de Alzheimer certas regiões do cérebro
literalmente desaparecem: fisiologicamente e funcionalmente, não existem mais.
Formam-se placas de amilóides e emaranhados celulares que obturam por completo
a atividade elétrica de determinadas regiões cerebrais. E podem ser conjuntos
de neurônios que fazem parte de outro circuito que contenha memórias. mas ao
lado das regiões afetadas há outras intactas. E o Alzheimer se caracteriza por
isso. Às vezes, de um dia para o outro perde-se a capacidade de reconhecer o
filho, por exemplo.
Muitas pessoas gostariam de ter uma memória melhor, de
lembrar de tudo. Você acharia isso desejável? Existe hipermemória? Esquecer é
importante?
Existe, sim, hipermemória. McGaugh estudou recentemente dois
casos fantásticos de hipermemória: um de uma mulher que era desenhista de
tribunais, que tinha uma memória fotográfica fantástica, e outro de um homem
que se lembrava do que aconteceu, por exemplo, no dia 12 de Outubro de 1944, o
que depois podia ser confirmado nos jornais. São memórias muito longe de
perfeitas, mas muito melhores que as nossas: se aconteceu algo importante numa
determinada data, o homem iria se lembrar e a mulher também – de eventos da vida
deles, da vida de outras pessoas, que fossem importantes. Porém, como nós, se
lembram de apenas alguns desses eventos, já que é impossível se lembrar de
tudo, pois usamos literalmente o mesmo sistema para realizar todos os processos
de memória, e não podemos usá-lo ao mesmo tempo para duas coisas. É como as
mães geralmente dizem: “não me peça outra coisa, eu só tenho duas mãos!”. Não
há como alcançar o doce lá em cima se estamos lavando louça – tem que primeiro
fazer uma coisa para depois fazer outra. E com a memória é igual: são células
do hipocampo, células do córtex parietal... Enfim, não vá pedir para estas
células, e suas enzimas, que trabalhem dobrado, porque não tem como. Então, é
preciso maneirar, não é possível usar a mesma célula ao mesmo tempo para duas
coisas...
Mas no caso destas pessoas que têm hipermemória, existe
um custo?
Sim, a hipermemória vem com um custo. Os indivíduos que tem
hipermemória não são pessoas importantes, nem que tenham feito coisas valiosas
na vida, não são criativos. São pessoas de uma vida infeliz, como era o caso do
“Funes, o memorioso”, personagem de Jorge Luis Borges, que era um pobre
infeliz, triste, meio metido, mas no fundo, burro, apesar de se lembrar de
tanta coisa. Ele sabia latim, mas e daí? Era um cara que se mexia pouco, morava
num subúrbio, num povoado pequeno do interior do Uruguai, o que iria fazer com
latim? Era uma vida que não requeria latim para ser feliz. Esta mulher do
tribunal era também triste, capaz de poucas conversas, não se interessava e, às
vezes, suspirava “ai meu Deus, nem me faça lembrar.”
Então esquecer é importante também?
Sim!
Por que? É justamente porque usamos o mesmo mecanismo pra
reter novas memórias?
Sim, claro. E depois tem muitas outras coisas que realmente
valem a pena esquecer. Todas as humilhações, momentos ruins e etc. Não sei se é
bom esquecer a ponto de perder essas informações, talvez seja bom retê-las. Mas
não é bom evocar essas informações a qualquer momento. Eu conheci um cara que
tinha flashbacks da guerra e era horrível. O cara bebia um pouco, e começava a
ter flashbacks de quando estava saindo no Vietnã em um helicóptero e um cara
morria ao lado dele... Era horrível! Ele sempre pensava na mesma coisa, sempre
as mesmas cenas e lembranças.
Da mesma maneira que você demonstrou que existem
mecanismos diferentes de memória, que acontecem em paralelo, existem também
mecanismos diferentes de esquecimento que ocorrem em paralelo?
Sim, sem dúvida! Existem dois, por exemplo, que eu tenho
suspeita que devem ser basicamente a mesma coisa, mas talvez não sejam: a
repressão freudiana e a extinção pavloviana. A extinção ocorre quando um
estímulo deixa de ser associado a outro. Assim o indivíduo ou o animal passa a
esquecer que quando a campainha tocava ele recebia carne, por exemplo. A pessoa
passa a esquecer a conexão entre uma coisa e sua conseqüência. Isso é uma
extinção. E se usa na terapia. É brutalmente efetiva na terapia do estresse
pós-traumático. Por exemplo, vem o psiquiatra e mostra ao paciente que está com
estresse pós-traumático do 11 de setembro uma foto de um avião batendo no
outro. E o paciente fala “Ai! Não me mostra isso!”. E o médico diz “Peraí, você
está no meu consultório!”. Então a pessoa passa a desassociar a imagem da
realidade que o traumatizou: passa a ver a foto como apenas uma coisa que o
psiquiatra está mostrando em seu consultório.
Mas isso é diferente do que a gente chama de esquecimento
normal.
Claro. No esquecimento você perde a memória. Pode ser por
ausência de formação de persistência; a gente consolida uma memória, mas ela
não ganha persistência. Mas também é possível esquecer o que já persistia
antes. Por exemplo, certamente eu esqueci de crianças que foram comigo no
colégio e estiveram lá comigo por um dia ou dois. Eu os vi uma ou duas vezes na
minha vida e não sei quem eram, como se chamam, nem lembro da cara, nem quantos
eram... Nem lembro se realmente existiram! Essas se perderam pra sempre. Tanta
gente que a gente vê passando pela rua, e de quantos nos lembramos à noite?
E a repressão?
A repressão é uma coisa que, em geral, o cérebro faz por
conta própria, sem que a gente precise pensar nisso. O cérebro suprime memórias
automaticamente. E suprime provavelmente não só a evocação das memórias, mas às
vezes o conteúdo da memória em si, a informação. A gente pode até reprimir
memórias voluntariamente, se dizer “ai, não quero mais lembrar da cara do
Fulano de tal” e faz, consegue, às vezes consegue. Mas geralmente o cérebro faz
isso sem que a gente pense: apaga o que para a gente é desagradável, é ruim.
E isso também envolve o hipocampo?
Não sei. Envolve o córtex pré-frontal medial, e envolve a
amígdala. A extinção também envolve amígdala, hipocampo e córtex pré-frontal
medial. Por isso eu suspeito que sejam faces da mesma moeda: repressão e
extinção. Mas não estou seguro, não tenho nenhuma evidência nem a favor nem
contra. Ninguém tem.
Boa parte das pessoas já ouviu falar de consolidação da
memória. Mas esse conceito de persistência da memória, pra além da
consolidação, isso é novo, não?
É novo, um conceito que nós inventamos recentemente. É uma
nova fase da memória, um período de mais transformações moleculares que vem
depois da consolidação, e que deve envolver transformações morfológicas,
causadas por BDNF. Talvez seja a fase sobre a qual queremos agir, em muitos
casos, e não necessariamente a consolidação.
Então o que a gente lembra dias depois de ter aprendido
alguma coisa é persistência e não consolidação?
Dias depois, anos depois, isso é persistência. A
consolidação termina no momento em que a memória passa a durar mais de seis
horas. Se a memória dura mais de seis horas, ela foi consolidada. Agora, se
dura dois dias, como no homem e no rato, ela tem persistência. É curioso que o
tempo seja parecido no homem e no rato.
E qual é o papel do reforço nessas fases?
O reforço faz com que a memória se forme, em primeiro lugar.
E faz com que a memória seja ou não emocionalmente saliente. Por exemplo, para
um animal faminto, o reforço de carne, como o cachorro de Pavlov recebia, será
emocialmente importante. Lembrar de levantar uma pata quando vem um choque
elétrico ou se ouve uma campainha também é emocionalmente muito importante. O
reforço é o que traz, pode-se dizer, a emoção. Sim, traz a emoção a memória! O
drive, a motivação.
E evocar memórias também influencia na sua persistência?
Seguramente sim, através, entre outras coisas, de mecanismos
de reconsolidação, mas nós, até agora, não constatamos isso. Às vezes
basta a apresentação do estímulo condicionado para melhorar a memória.
Você acha que faz algum sentido a permanência da memória
diminuir com a idade? Isso é um resultado de acúmulo de memórias ou é uma coisa
que simplesmente acontece?
Pode ser acúmulo de memórias. Agora o que vimos é que a
diminuição de fato acontece. Mas como e por que não sei. Vimos que as pessoas
com mais de 40 anos não se lembram de que filme viram há uma semana: sabem o
que viram ontem e anteontem, mas não na semana passada. Isso acontece para
muitos tipos de informação, inclusive para informações mais fáceis de guardar.
Por exemplo, uma memória que se perde em um dia, em geral (às vezes dura dois,
mas não mais que isso), é onde estacionamos o carro quando chegamos no
trabalho. Isso é fundamental de eu esquecer, se não vou voltar sempre no mesmo
lugar e o carro não vai mais estar lá. E esse esquecimento é claramente
fisiólogico.
Será que existe um mecanismo que marca: essa memória aqui
pode durar tantas horas, mas disso não pode passar?
Deve ter. E isso deve ser o hipocampo que faz, com
informação da área tegmentar ventral. [leia a respeito do artigo
recém-publicado onde Izquierdo e sua equipe demonstram isso]
E da mesma forma que existe memória seletiva, deve
existir esquecimento seletivo também, não é?
Claro, tem que ter.
Você acha razoável pensar que se a gente considerar que o
hipocampo tem essa rotatividade de neurônios, sempre com uns nascendo e outros
morrendo, esse período de vida útil de um neurônio no hipocampo seria o quanto
uma memória persiste caso ela não seja transferida pra outras áreas?
Pode ser. Explicaria bonito isso.
Por que isso explicaria por que até um certo período nós
conseguimos nos lembrar de certas coisas e daí em diante nós esquecemos.
Seria uma explicação muito bonita, muito boa. Não saberia
como investigar isso aí. Não é fácil.
Pensando assim, esse esquecimento pra além do período de
vida dessa memória transitória seria natural e útil, inclusive...
Sim, é muito interessante! Seria muito bom. Daria uma função
à neurogênese, por exemplo.
Você acha que a depressão pode estar relacionada com a
dificuldade de esquecer coisas ruins, ou também de não se lembrar de coisas
boas?
As duas coisas. Sem dúvida as duas coisas!
Todo mundo sempre quer lembrar mais, ter uma memória
melhor, ou apenas “menos pior”. O que você diria pra essas pessoas? Qual o
melhor exercício, ou a melhor maneira de elas cuidarem da sua memória?
Que fiquem calmos, e se perguntem Será que isso é mesmo
necessário? E em segundo lugar: tem muitas evidências de que a memória humana –
a animal em geral, mas a humana em especial – está sempre funcionando o máximo
que pode, na sua máxima velocidade permitida no momento, dado o vento contra,
dado, por exemplo, que todos estamos em algum estado emocional de algum tipo em
todo momento da nossa vida, todos estamos mais ou menos cansados em todos os
momentos da nossa vida. Dado tudo isso, nossa memória está funcionando o melhor
que pode, mais do que isso não dá, não tem como! Menos do que isso, sim. Por
isso, em geral, as drogas, sobretudo no tratamento do Alzheimer, são muito boas
para quem tem a doença, mas na pessoa normal não têm efeito nenhum.
Vai ser muito bom as pessoas lerem isso em uma
entrevista, porque tem sempre alguém perguntando “Ah, o que eu posso tomar pra
melhorar minha memória?”.
É como um carro que tem certa velocidade máxima, um certo
consumo de gasolina e na vida está sempre numa pequena ladeira, às vezes maior,
às vezes menor; a velocidade depende de cada um e do estado em que ele se
encontra. Aí nessa situação vamos ter a máxima velocidade possível. Menos
podemos, mas mais, não tem como.
E a ritalina, que está ficando cada vez mais usada e que
você mostrou melhorar um pouco a persistência da memória?
A ritalina tem efeito sobre a persistência, não tem a menor
dúvida. Agora, não sei se tem algum efeito fora da persistência, realmente. Nós
não medimos. E eu tenho duas pessoas na família que tomam ritalina por
problemas de atenção. Os dois têm uma vida absolutamente normal.
Mas e o uso da ritalina em pessoas, digamos, normais:
você notou algum efeito negativo nelas?
As pessoas que participaram do meu estudo são normais, e
nenhuma delas relatou nada. Agora, eram todos ex-usuários de ritalina ou
pessoas fora do período de aulas, professores ou alunos que não estavam tomando
ritalina, mas tomavam no período de aulas. Então todos conheciam os efeitos e
nenhum deles relatou efeito negativo. Ou algum deles relatou, mas não tinha
tomado por minha indicação. Porque a minha indicação era menos que a dose
habitual, e não resultava nenhum efeito. Diziam que alguma vez, que tinham
tomado mais ritalina, no tratamento clínico deles, tinham tido um pouco de
excitação.
A ritalina não vai atuar especificamente, por exemplo “eu
só vou lembrar das coisas da matéria”: vou lembrar de tudo, não é? Inclusive
das coisas ruins?
Tudo, de tudo. E das coisas ruins inclusive. Se 12 horas
antes você teve um diarréia horrível ou também viu um filme, você vai lembrar
das duas coisas. E para que lembrar das diarréia?
Quer dizer então que, com a ritalina, a memória da
informação irrelevante também fica melhorada?
Sim. Fizemos um outro experimento com informações
irrelevantes, um teste com pessoas sobre a Copa do Mundo de 1954. O teste era
ler um texto com dados, 16 ítens sobre a Copa do Mundo de 1954. E todo mundo
achava um saco, porque começa que o Brasil não se deu muito bem nessa Copa,
então as pessoas estavam nem aí. E depois, 1954... faz tantos anos! Então as
pessoas liam, estudavam as informações durante dez minutos, e dois dias depois
tinham um teste, depois o teste era repetido sete dias depois. E as pessoas se
lembravam bem. Acertavam em média sete pontos em dez, dois dias depois, e
acertavam dois, três pontos sete dias depois. Porque achavam que era uma
besteira, cultura inútil. Porém, com ritalina aplicada 12 horas depois de terem
aprendido o texto, elas se lembravam sete dias depois perfeitamente bem - e
tinham raiva! Essa era uma memória irrelevante. Pra que saber da Copa de 1954?!
Agora, nesse mesmo teste tive um paciente que era um
húngaro, e a Hungria perdeu essa Copa na final contra a a Alemanha. A Hungria
era superior, todo mundo dizia, mas perdeu. Esse senhor húngaro tinha 87 anos,
e sabia o nome de todos os titulares da sua seleção nessa Copa. Hungria tinha
ganho de 8 x 3 da Alemanha na fase classificatória da Copa, e perdeu na final
por 3 x 2. Ele não podia acreditar!
Há um trecho no seu livro “Releituras do óbvio” em que
você fala sobre a mania que as pessoas têm de ser feliz, da necessidade de se
ser feliz o tempo todo...
A felicidade são momentos, não é um estado permanente. O
bobo é perpetuamente feliz, porque não se dá conta do que acontece atrás dele.
Agora, ser feliz a maior parte do tempo possível, claro, é muito bom! Mas não
temos obrigação e não existe felicidade permanente. Senão, não seria
felicidade.
Stevens Kastrup Rehen (2008)
Apesar do nome, Stevens Kastrup Rehen é carioca,
neurocientista com graduação, mestrado e doutorado pela UFRJ e pós-doutorado
pela University of California, San Diego e pelo The Scripps Research Institute.
No Brasil, trabalhou muitos anos sob a orientação do Prof. Rafael Linden
(Biofísica/UFRJ), e nos EUA integrou a equipe do Prof. Jerold Chun (UCSD,
Scripps). É ex-presidente da Sociedade Brasileira de Neurociências e
Comportamento (SBNeC), colaborador de três institutos de pesquisa
norte-americanos, Diretor de Pesquisa do ICB/UFRJ e Professor Adjunto da UFRJ,
onde chefia o Laboratório de Neurogênese e Diferenciação Celular (LANDIC), com
uma equipe de 15 alunos.
Stevens foi inovador ao ser o primeiro a trabalhar com
linhagens de células-tronco humanas no Brasil e a mostrar que no cérebro humano
normal existem células com número de cromossomos diferente dos 46 encontrados
no restante do corpo, o que caracteriza um fenômeno de aneuploidia, que parece
dar origem aos diferentes tipos celulares existentes no nosso cérebro. Fez
parte ainda da audiência pública do STF, cujo relator foi o Ministro Ayres
Brito, que discutiu a constitucionalidade do uso de células-tronco embrionárias
em pesquisas científicas e em terapias.
Leia a seguir a entrevista concedida gentilmente em maio de
2009 a Luisa Pimentel, da equipe do Cérebro Nosso, com quem Stevens conversou
sobre vários aspectos de seu trabalho: da descoberta da aneuplodia (diferença
no número de cromossomos entre neurônios no cérebro) ao interesse pela
diferenciação neuronal, seu trabalho com células-tronco embrionárias no Brasil,
a novidade das células pluripotentes induzidas, e o impacto dessas pesquisas
para o público.
ANEUPLOIDIA
Luisa: Nossa geração aprendeu uma biologia que
considerava que todas as células do corpo possuem o mesmo número de
cromossomos. Como você descobriu que não funciona assim no sistema nervoso?
Stevens: Na época eu trabalhava com o Jerold Chun, na UCSD,
e nós estavamos interessados em ver se existia no sistema nervoso algum tipo de
recombinação como acontece no sistema imunológico. A razão do interesse é que
não se entendia muito como se dava esta complexidade toda do sistema nervoso.
Nós usamos uma técnica de espectragem cariotipal (spectral karyotyping –
SKY), que permite detectar microdeleções no genoma de neurônios individuais, na
expectativa de que isto pudesse explicar a geração de diversidade por perda e
ganho de seqüências ou de pedaços de cromossomos. Fizemos várias análises e em
nenhum momento a gente encontrou nenhuma célula com translocação - que é como
se chama este fenômeno. Mas encontramos várias células com perda de cromossomo
inteiro. Ou seja, a pergunta era uma, e a gente acabou descobrindo outra coisa.
Foi mais ou menos assim que começou. Aí fizemos várias análises, primeiro em
camundongos em desenvolvimento, depois em camundongos adultos, depois em
humanos durante o desenvolvimento e adultos, e em outros animais também. O
Jerold continua com esta linha de pesquisa, estudando peixes também.
Luisa: Como a aneuploidia acontece?
Stevens: A gente não sabe exatamente como, mas tem um artigo
nosso no Journal of Neuroscience de 2003 que sugere que ela
aconteça durante o próprio processo de divisão celular, durante um processo de
não-disjunção, no qual alguns cromossomos não ficam amarrados, não ficam
ligados ao fuso corretamente e na hora da divisão da célula, durante a mitose,
eles se perdem. Em inglês, esses são os laggard ou lagging
chromossomes, algo como um “cromossomo desgarrado”. Como o cromossomo que
não fica no fuso é perdido, isso pode explicar por que a gente vê mais perda de
cromossomo do que ganho. Nós também observamos um excesso de centrossomos, que
são importantes para a formação do fuso. Normalmente, são dois, mas em alguns
casos encontrávamos três centrossomos. Então, ao invés da célula se dividir em
dois pólos, havia um terceiro centrossomo que puxava o cromossomo para este
terceiro pólo e depois desaparecia.
Luisa: Essa aneuploidia tem alguma função
normal no cérebro ou é uma anomalia? Qual é a percentagem de neurônios
aneuplóides no cérebro?
Stevens: Não sabemos [Stevens propõe que a
aneuploidia seja parte normal dos processos que levam à diferenciação dos
neurônios durante o desenvolvimento; veja abaixo]. É sabido que existem
células aneuplóides nos cérebros de pessoas ditas normais, mas de perto ninguém
é normal! A aneuploidia não está ligada claramente a doenças, e está também
presente em pessoas que não têm uma doença neuropsiquiátrica ou
neurodegenerativa muito evidente. Os pacientes que a gente examinou faleceram de
causas não relacionadas a nenhuma patologia do sistema nervoso. Mas isto não
quer dizer que não exista uma relação entre a aneuploidia e alguns tipos de
patologia. Um trabalho de um grupo russo mostra alguns dados indicando uma
relação entre esquizofrenia e aneuploidia. Então pode ser que existam variações
desta aneuploidia que possam levar a ou explicar algumas doenças.
Luisa: Você acha que a quantidade de células
aneuplóides é um fator de influência?
Stevens: Não só a quantidade, mas o também o tipo de
aneuploidia. Aneuploidia é um nome genérico para perda e ganho de cromossomos.
Certamente perder o cromossomo 21 é diferente de perder o cromossomo 15, ou de
ganhar o 18 [ganhar um cromossomo 21 extra, por exemplo, define a
Síndrome de Down]. Então são combinações muito particulares. Talvez estas
combinações expliquem diferenças intrínsecas entre nós. E a gente pode imaginar
até uma rede... Um trabalho recente mostra a importância de neurônios únicos
para uma rede de neurônios. Se você tiver cem neurônios e um deles for
aneuplóide, este neurônio dispara potenciais de ação, expressa genes, produz
proteínas de forma diferente dos outros. E isto pode afetar toda a rede. Claro
que é uma especulação, uma hipótese muito ambiciosa, que é difícil de testar,
mas a gente acha que a aneuploidia contribuiria para explicar esta nossa
individualidade, porque ela não é genética, ela poderia ser gerada durante a
formação de cada um, de maneira até certo ponto independente da informação
genética. É um fenômeno intrínseco do desenvolvimento, como se fosse uma
impressão digital. Cada ser humano terá sua combinação. As análises que a gente
fez, mas que ainda são muito preliminares, indicam que não há pessoas com
níveis idênticos de aneuploidia.
Luisa: Somente os neurônios apresentam aneuploidia, ou as
células gliais do cérebro também?
Stevens: Temos um trabalho no Journal of
Neuroscience de 2005 que sugere que células gliais também sejam
aneuplóides. Foi um trabalho com dados obtidos por exclusão. Nós examinamos
células do cérebro adulto de humanos marcadas com NeuN, que identifica
neurônios, e separamos essas células das demais usando citometria de fluxo.
Dentre essas outras células, a gente presume que haja muitas células gliais, e
identificamos várias aneuplóides, mas isto não significa que todas células eram
gliais.
Luisa: A aneuploidia pode ser implicada em
distúrbios como o autismo?
Stevens: Sobre o autismo e a aneuploidia saiu um trabalho
recente indicando esta correlação. Nós imaginamos que esta aneuploidia é ainda
mais complicada porque ela acontece em mosaico. Se você faz um exame de sangue
numa pessoa com Síndrome de Down, encontra células que têm três cromossomos 21.
No entanto, acreditamos que existem pessoas que tem três cromossomos 21 no
cérebro e não no sangue. Isto acontece em graus variados de Síndrome de Down. A
gente imagina que aconteça o mesmo em pessoas que não têm nenhum grau de Down,
mas que apresentam algum tipo de comportamento que não conseguimos identificar
de maneira mais óbvia. E no autismo acontece a mesma coisa. Ainda tem muito o
que se caminhar neste sentido, mas existem correlações entre autismo e
aneuploidia. Ainda não foi investigado no cérebro, mas olhando no sangue e em
outros tecidos, há uma correlação.
Luisa: Qual é a correlação que este fenômeno
estabelece entre a Doença de Alzheimer e a Síndrome de Down?
Stevens: Toda pessoa que tem Síndrome de Down acaba
desenvolvendo Doença de Alzheimer precocemente. O gene da proteína precursora
do amilóide (APP – que produz beta-amilóide), que não é nem o principal hoje em
dia, mas que é um dos envolvidos na Doença de Alzheimer, está localizado no
cromossomo 21, que é triplicado na Síndrome de Down. Então esta é a relação.
Alguns trabalhos indicavam um aumento de incidência de trissomia do cromossomo
21 em linfócitos de pacientes com Doença de Alzheimer, mas ninguém procurou no
cérebro. Esta é uma das coisas que eu começei a fazer nos Estados Unidos e não
consegui terminar. Basicamente porque quando você pega o cérebro de pessoas
mais velhas e, normalmente, são as pessoas mais velhas que têm Alzheimer, elas
têm um background de aneuploidia natural do envelhecimento que
se confunde com a marcação dos cromossomos. Então nunca consegui ter um
resultado de fato definitivo em relação à trissomia no cérebro dos pacientes
com Alzheimer.
CÉLULAS-TRONCO
Luisa: Como foi que, da aneuploidia, você
passou a se interessar pelas células-tronco?
Stevens: O que acontece é o seguinte: o que nós publicamos
nos últimos anos é que no cérebro há células aneuplóides, e que esta
aneuploidia também acontece durante a neurogênese. Nós estudávamos camudongos
em estágio embrionário, observávamos os precursores neurais da zona
ventricular, que vão formar o córtex cerebral, e víamos que 30% das células
desta zona eram aneuplóides. Daí surgiu a teoria de que a célula se tornava
aneuplóide quando estava se diferenciando, ou seja, quando ela estava virando
neurônio. Por causa disto, quisemos trabalhar com células embrionárias, um bom
modelo porque podem virar qualquer outra célula. Se para se transformar em
neurônio uma célula tem que perder cromossomos, vamos pegar uma embrionária que
pode virar qualquer coisa e fazê-la virar neurônio, e fazê-la virar uma outra
coisa, um outro tipo celular. Se a aneuplodia for um fenômeno específico, ela
vai acontecer só na hora da diferenciação neuronal.
Luisa: É verdade que a aneuploidia pode
induzir a transformação de um neurônio em célula tumoral?
Stevens: Este é um tema
que está sendo discutido há 100 anos. Um pesquisador chamado Theodor Boveri
correlacionou aneuploidia com câncer: ele trabalhava com ouriço-do-mar e viu
que as células tumorais nestes animais apresentavam algum tipo de aneuploidia.
Só que nunca ficou claro se a aneuploidia causa o tumor, ou se é conseqüência
dele. Um outro pesquisador, chamado Don Cleveland, defende que de fato existe
uma relação mais direta entre a aneuploidia e o câncer. Na verdade existem
tipos e tipos de aneuploidia. Talvez o ganho de cromossomos seja a
característica mais marcante do câncer. Nossa proposta é que, se para o câncer
há ganhos, para a diferenciação o que acontece com mais frequência é perda de
cromossomos. Podemos imaginar o neurônio como uma célula ultraespecializada,
como uma pessoa formada em Medicina ou Biologia, por exemplo, que chega numa
biblioteca. Se ela busca alguma coisa da sua área, vai procurar em estantes que
tenham livros de Biologia, e não Artes ou Filosofia. Com o neurônio seria mais
ou menos a mesma coisa. Ou seja, perder um cromossomo pode ser simplesmente
jogar fora informação que não será necessária naquele momento. Mas isto é
completa especulação.
Luisa: Existem neurônios com mais cromossomos
do que o normal?
Stevens: Existem, mas são muito poucos. A maioria que a
gente encontrou tinha perda de cromossomos.
Luisa: E quanto à possibilidade de uma
célula-tronco se transformar em tumoral? Como isso acontece?
Stevens: Existe uma aneuploidia que acontece com as células
que estão em cultura, que não é a aneuploidia que a gente chama de natural,
relacionada com a diferenciação. É uma aneuploidia causada pelo próprio
cultivo. Pela nossa convenção, evitamos trabalhar com células aneuplóides com
ganho de cromossomos. Apareceu outro dia no laboratório uma linhagem de células
[humanas] com 47 cromossomos, células que antes tinham 46, como é o normal para
células humanas, e, de repente, ficaram com 47. Em algum momento durante a
passagem das células, ou por causa da enzima que nós usamos no cultivo, o
padrão foi modificado. E isso a gente não quer que aconteça. Uma coisa é
estudar o fenômeno biológico da aneuploidia durante a diferenciação para
entender ou tentar correlacionar perda e ganho de cromossomos com o fato de uma
célula virar neurônio, outra coisa é a aplicação terapêutica. Neste caso, até
que se prove o contrário, a gente não quer células aneuplóides. Pelo menos com
níveis de aneuploidia relacionados com tumorização.
Luisa: Isto não é um risco potencial para as terapias
com células-tronco? Que fatores influenciam a transformação das células-tronco
em neurônios e em tumores?
Stevens: É um risco que depende do grau de aneuploidia. O
que estamos investigando é se a perda de cromossomos também é ruim. Há uma
hipótese de que existam células-tronco tumorais. Isso explicaria por que não se
consegue tratar alguns tipos de tumores com quimio- nem com radioterapia,
porque a célula-tronco se divide mais lentamente. Ou seja, você elimina os
progenitores, mas não sua fonte. Então é isto que todo mundo está tentando
entender, tentando buscar quais são os fatores que levam uma célula virar um
neurônio. Já existem vários trabalhos que indicam alguns destes fatores. Mas a
própria população de células que a gente denomina neurônios é muito diversa.
Alguns protocolos [procedimentos no laboratório] permitem gerar neurônios
dopaminérgicos com uma certa “facilidade”, mas em relação a outros tipos de
neurônios ainda estamos engatinhando. A gente sempre deve pensar o que acontece
no organismo vivo durante a diferenciação. A neurogênese, a formação do tubo
neural, é extremamente complexa. Não é uma coisa trivial que se consiga de uma
hora para a outra replicar numa placa de cultura.
Luisa: Para quais doenças do sistema nervoso
central a terapia com células-tronco é um horizonte real? Qual é a projeção de
tempo para que se consiga consolidar estas terapias?
Stevens: Não há nenhuma projeção de tempo. Tudo pode mudar
dependendo deste teste clínico que está sendo feito agora nos Estados Unidos: testes
com células embrionárias para tratamento de acidentes que causem paraplegia por
lesão aguda da medula espinhal. Dependendo do que acontecer neste teste,
teremos uma idéia um pouco melhor da segurança do uso de células embrionárias e
da executabilidade da técnica. Em função de serem lesões mais pontuais, a lesão
de medula e a própria Doença de Parkinson seriam condições que nos permitiriam
ter uma noção melhor, a curto prazo, da eficácia ou não destas terapias.
Luisa: Existem áreas que são prioritárias
para este tipo de tratamento? Há diferenças quanto ao investimento?
Stevens: Eu acho que varia muito em função de quanto barulho
fazem as pessoas interessadas. Você vê, por exemplo, o Michael J. Fox: um cara
muito conhecido, tem Doença de Parkinson, conseguiu montar uma Fundação e
arrecada uma boa grana que ele repassa para os pesquisadores. É difícil falar
de prioridade. Você tem que ver quantas pessoas falecem ou ficam debilitadas.
Eu acho que um assunto se tornar prioritário ou não é muito mais em relação à
motivação e interesse dos pesquisadores e à mobilização da sociedade.
Luisa: Até o medo das pessoas em relação à
determinadas doenças...
Stevens: É, isto também influencia em quanto investimento
haverá naquela área.
Luisa: Que tipos de manipulações podem ser
feitas com as células-tronco embrionárias com fins terapêuticos?
Farmacológicas, genéticas? Para que servem?
Stevens: Esta pergunta é muito ampla, dá para conversar três
horas sobre isto. Você pode utilizar a célula-tronco para desenvolver, por
exemplo, uma estratégia para identificar novos fármacos in vitro.
Pega-se uma célula-tronco embrionária, transforma-se essa célula em
cardiomiócito, em tecido cardíaco, e depois prepara-se dezenas, centenas de
placas com estas células. Após desafiar as células com algum insulto, é
possível testar a eficácia de alguns medicamentos na sua recuperação: esta é
uma ferramenta para tentar estudar novos fármacos utilizando célula-tronco.
Também é possível pensar na própria aplicação da célula-tronco em pacientes, a
princípio sem manipulação genética, mas é possível, a longo prazo, pensar em
combinar terapia gênica com terapia com células-tronco embrionárias. Quanto à
manipulação farmacológica, você poderia considerar que o que está sendo feito in
vitro para diferenciar a célula-tronco antes de ser injetada no
paciente já é um tipo de intervenção. Além disso, a pessoa que receber
células-tronco embrionárias vai ter que receber imunosupressor para não haver
rejeição.
Luisa: É que parece que logo que o assunto
células-tronco começou a ganhar força, surgiram algumas questões como: “será
que as células-tronco vão dispensar o uso de medicamentos? Será o fim da
Farmacologia?”
Stevens: Se você for pensar bem friamente, a célula-tronco
ainda é uma caixa preta. Você injeta aquela célula e, por mais que estude, vai
ser muito difícil caracterizar todos os fatores que estão envolvidos na
recuperação do tecido. Mas eu tenho certeza que depois que forem identificados
estes fatores, vai haver uma volta à Farmacologia. Se um dia você souber que
não precisa injetar a célula-tronco, pois basta uma dose de um fator que aquela
célula produz, você simplesmente injeta o fator.
Luisa: Qual seria a vantagem da utilização da
técnica de reprogramação celular [de células adultas] em relação às
células-tronco embrionárias?
Stevens: Existem vantagens, mas que não acabam com a
necessidade de se continuar trabalhando com as células-tronco embrionárias. A
iPS (célula-tronco pluriponte induzida) é tirada do próprio paciente, da pele,
então a identidade genética desta célula é a mesma do paciente. Se você pensar
no caso de uma pessoa que tenha Doença de Parkinson, para a qual se vislumbre
um tratamento por terapia celular, o ideal seria você pegar a célula iPS da
pele deste paciente, reprogramar para virar uma célula embrionária, depois
diferenciar em dopaminérgica, e por fim injetar na pessoa. Você teria um
neurônio dopaminérgico que se originou da própria pessoa. Este seria o melhor
dos mundos. Além disto, a célula iPS é um excelente modelo para se estudar
doenças. Há vários trabalhos por serem publicados sobre pessoas que têm, por
exemplo, esclerose lateral amiotrófica, atrofia espinhal, etc., e que tiveram
algumas células retiradas da pele. Os pesquisadores reprogramaram estas células
em neurônios, que são neurônios equivalentes aos que sofrem com a doença – o
que facilita muito estudar patologias.
Luisa: Qual é o andamento das pesquisas no
seu laboratório com as células iPS? Quais os maiores problemas que estão sendo
enfrentados?
Stevens: O andamento é o natural que a gente tem, com os
desafios existentes para se fazer pesquisa no Brasil. Mas nada que atravanque
ou engesse a pesquisa.Em termos de financiamento, estamos razoavelmente bem
para uma técnica nova, descrita em 2007. Claro que agora a tarefa é publicar os
resultados que foram divulgados. Estamos trabalhando para isto.
Luisa: Comparado com a célula-tronco
embrionária, utilizar a iPS traz algum problema adicional?
Stevens: É isto que a gente está vendo. Temos alguns
experimentos feitos por pessoas do laboratório interessadas em comparar a
célula-tronco embrionária com a iPS. Alguns resultados na literatura mostram
que as iPS não são 100% idênticas às outras células de uma pessoa, como se
pensava que seriam, mas agora é preciso descobrir o quanto elas são diferentes
e se esta diferença atrapalharia numa substituição, seja em termos de terapia,
ou seja em termos de pesquisa no laboratório.
Luisa: Qual é o estado atual da pesquisa com
células-tronco no Brasil? O que será o Laboratório Nacional de
Células-Tronco Embrionárias (LaNCE)?
Stevens: O estado atual é promissor. Nós recebemos
investimento do Governo, do Ministério da Saúde, do Ministério da Ciência e
Tecnologia para organizar uma rede nacional de terapia celular para incentivar
pesquisar nesta área e fazer com que outros grupos de pesquisa passem a
trabalhar com isto, para que se consiga gerar resultados com mais rapidez tanto
em pesquisa básica quanto em pesquisa pré-clínica e clínica. O LaNCE é um
destes centros de tecnologia embrionária, o braço carioca, digamos assim, da
rede nacional de terapia celular e que vai funcionar aqui na UFRJ, no Hospital
Universitário. E que vai estar pronto, se tudo correr bem, em dois três meses.
Luisa: Como foi participar da audiência pública do STF
que discutiu a questão da utilização de células-tronco embrionárias em
pesquisas e para terapias?
Stevens: Foi interessante, foi educativo e eu acho que vou
me lembrar para sempre. Foi um momento interessante de discussão, acho que foi
a primeira audiência do Supremo nestes termos. E valeu a pena, tanto que hoje
em dia é possível se trabalhar com estas células. Eu tinha acabado de voltar
dos Estados Unidos, eu ainda não tinha aterrissado direito, mas foi legal.
Luisa: A exposição do Ministro Carlos Ayres
Brito foi bem interessante, né?
Stevens: Foi. Ver a perspectiva de outras pessoas, de outras
áreas, sobre este trabalho, é interessante. Você percebe a importância que este
trabalho tem também no inconsciente coletivo.
Luisa: E também a importância de divulgar a
ciência...
Stevens: Exatamente. Aí você entra em outro campo, que são
as pessoas que estão se aproveitando do nome célula-tronco para vender
“célula-tronco em pó”, que não faz nada. Então, esta é a importância também
desta exposição dos conhecimentos na área de células-tronco e da divulgação
científica.
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